O MONSTRO
Ele me odiava.
Citava meus defeitos e erros
como o fogo que eternamente queima, marca e incendeia. Era um monstro. Uma
criatura que me acompanhava por onde eu caminhava.
Lembro-me de seus olhos.
Animalescos, pintados de vermelho como sangue vivo. Presas longas que poderiam
cortar aço e feições grotescas e assustadores, raízes e pêlos, cinzas e negros.
Era o gelo e a dor, pintadas num quadro que me arrepiava.
Mas ele estava sempre comigo.
Sempre.
Em cada momento da minha
vida.
E eu não pedia para ele ir
embora. Não o empurrava, gritava ou suplicava para ele ir. Não chorava
implorando para que ele me deixasse.
Era o oposto, eu pegava e
segurava sua mão, sentindo o seu toque, apreciando aquela sensação.
Sua voz.
—Você é uma estúpida!-
Sussurrava ele no meu quarto, enquanto tentava soprar as lagrimas que me
cobriam- Você é uma inútil?
—Mas eu não quero ser!-
Rebatia, apertando meus punhos contra mim.
—Estúpida! Feia!
Insuportável!
—Não...
Eu sentia seu hálito contra
mim. Sua saliva escorria em meu pescoço, manchando minha clavícula com aquele
liquido fétido e cinzento como a tempestade, um vestido de horror que queria
tirar.
—Já se olhou no espelho? Já
observou o seu rosto? Suas cicatrizes? Sua pele? Ela não é macia, não é firme o
suficiente. Olhe como está vermelha e inchada! Olha seu rosto!
—Eu não...
Mas ele continuava.
—Que horrível! Acha que
alguém vai te amar? Que alguém vai gostar de alguém com o rosto assim?
—Não. –Falava entre soluços-
Ninguém nunca irá.
—Tão feia...
—Sou tão feia- Repetia em
concordância. – Ninguém irá me amar.
—E tudo que você fala! Olha
só...O jeito que você fala! É irritante!Imperfeito! Não sabe falar nada certo!
Tudo é confuso! Idiota! Acha que alguém vai dar importância?
—Mas eu tento...
—Não é boa! E nunca vai ser!
Você nunca vai fazer nada certo!
—Eu tentei...
Ele sorria. O sorriso mais
horrendo e assustador que um humano poderia imaginar em seus mais profundos
pensamentos.
—É melhor que fique quieta.
Seu silencio acalmara as almas dos mortais. Ninguém ficara em paz se ouvir sua
voz desprezível.
—Mas eu quero conversar.
Quero ter amigos!
—E quem seria amigo de alguém
como você? Feia, estúpida... Horrivel. Ninguém seria capaz de ser amigo de uma
garota como você!
—Eu queria ter alguém para
conversar.Qualquer um- Coloquei as palavras, sentindo o peso da solidão em cada
pronunciamento.
Mas minhas palavras apenas
lhe davam força, aumentavam seu toque contra meus dedos, entrelaçando ainda
mais. Minha rebatida não era sincera. Eu realmente acreditava e cada palavra,
cada silaba, cada consonante e vogal. Era estupidamente sincero e verdadeiro o
que ele dizia afinal.
—Eu já fiz algo certo? Algo
bom? Algo bonito?
Jogava essas palavras mesmo
sabendo o que ele iria responder.
—Não. Tudo sempre foi errado.
Ruim. Feio. Nada que sua mente produz e cria tem um efeito positivo. Você
estraga o mundo com tudo que tem, com sua existência.
—Tudo?
Seus dedos passaram pelo meu
cabelo desgastado em tons neutros. Unhas passando em cada fio, tocando uma nota
desafinada que me fazia arrepiar.
—Tudo. Tudo em você está
errado. Sua personalidade, quem você é. Tudo dolorosamente errado.
—Feio- Complementei
afundando-me no travesseiro.
Passava horas a fio
alimentando a criatura com meu pesar e tristeza. Apenas ele ecoava em minha
cabeça, por mais que parecesse estar bem para o mundo. Ele estava sempre
comigo, agarrado em mim. Todas as atividades, esparsas, eram em sua companhia.
Em um café ou ao som da avenida. Conversando. Pensando. Tudo era ele.
Suas palavras.
O meu monstro.
Ele. Ele. Ele. Cada segundo.
Feia.
Eu sei.
Já se olhou no espelho?
Feia.
Seu corpo está errado. Seus
olhos são errados.
Por que falou aquilo? Agiu
assim?
Estúpida. Inapropriado.
Idiota.
Inútil!
Um tormento.
Tudo aquilo me carregava e me
consumia. Os pensamentos atrapalhavam o meu apetite e bagunçavam minha
visão.Não tinha fome ou sede. Os passos pareciam tortos e complicados, como se
não existisse chão sobre meus pés.
A cama estava se tornando meu
lar.
Cada dia que passava ele se
tornava maior e mais forte. Sobre os pés da minha cama, sempre ao meu lado, ele
crescia e crescia. Seus pelos aumentavam. Suas garras eram mais profundas e os
olhos mais aguçados.
Seu tamanho já estava me
sufocando. Sobre os ossos dos meus dedos não estava mais sentindo, não
havia mais tato. Não estava mais vivendo. Todo o ar que respirava não era mais
meu.
Maior. Mais forte. Mais
perigoso.
Cruel.
Ele estava me matando.
Eu estava morrendo.
—Você é errada. Errada.
Feia.Feia.
Era ele ou eu.
Estava perdendo. Eu sabia
disso.
Se perdesse eu não veria o
sol mais. Não iria...
Tente.
Levante.
Você consegue...
—Você está errado!- Gritei em
meio a soluços e lágrimas- Você está errado!
—Você sabe que não estou!
Era o meu momento.
—Está! Eu... Não sou um erro!
—Como pode provar isso?
Era minha chance.
—Estou falando com você!
Estou... Tentando. Eu já fiz coisas certas!
—Você deixa o mundo cinza...
—Você é assim! Eu posso
contribuir. Posso dar... Cor ao mundo. A alguma coisa! Algum sentindo. Eu já
fiz algo certo!
—Diga uma coisa!
Suspirei profundamente,
tentando agarrar ao ar que ainda existia.
—Diga!- Ele repetiu.
Você fez.
Diga.
—Ajudei pessoas na escola
mesmo você dizendo que isso seria em vão. Falei, mesmo quando você dizia que eu
era um lixo.Escrevi, mesmo você dizendo que cada palavra não prestava. Senti e
amei, mesmo dizendo que jamais seria recíproco. Eu errei e errei, mas ainda
sorri. Eu ainda posso...Sorrir.
Ele franziu o cenho. Eu
me ergui.
—Eu consigo- Estava em pé,
sentindo os dedos no chão. Olhava para cima, para toda sua proporção, seu
sorriso maléfico- Eu posso conseguir. Me erguer. Ser quem sou.
—Você é assim... Um...
—Lixo?! Não! Eu não sou! Sou
alguém! Sou uma garota cm nome e historia! Uma garota feita de medos, grande
parte deles por sua causa! Eu não sou esses pedaços espalhados de tristeza e
silêncio. Sou mais do que isso.
—Você...
—Sou capaz!
Seus olhos me encararam. Não
havia mais vermelho neles, mas um cristalino azul quase humano.
—Eu vou ser feliz.
No mesmo dia, o Monstro
afirmou.
—Você é indigna!Horrível.
Estava no espelho. Não havia
maquiagem e ossos sobressalentes desenhavam a linha da minha mandíbula. Estava
vestida apenas com minha pele, com os dentes levemente desalinhados e a curva
dos meus olhos acentuada.
—Não sou!- Fixei-me naquela
afirmação, enquanto jogava água em meu rosto. A quanto tempo não fazia isso?-
Meus olhos são lindos- Sussurrei, fixando meu olhar na pintura âmbar da minha
íris.
Ele estava aparecendo no
fundo. Agora via o seu reflexo, o alinhamento mais suave dos seus olhos.
—Você sabe que é?- Duvidou.
—Sei. Sei que meu sorriso e
meus olhos são lindos- Rebati, soltando o nó do meu cabelo.- Que eu sou única e
incrível do jeito que sou.
Conforme os dias foram
passando observei o quão distinto ele ia se tornando. Estava enfraquecendo com
o som da minha voz e da firmeza dela, diminuindo seu corpo, perdendo as garras,
os pêlos e a dor em seus movimentos. Ainda estava acompanhando meus passos, mas
de uma maneira diferente. Mais silencioso. Gracioso.
Uma manhã, enquanto
agarrava-me a livros e um copo de café (havia marcado de sair com uma nova
amiga no entardecer) ele me assustou com sua voz. Mesmo estando sempre comigo,
havia seus lapsos.
—Você está linda...
Aproximei a xícara aos
lábios. Ao meu lado não havia um monstro. Ele se tornara humano, dolorosamente
humano. Leve, jovem e esguio, vagando com lábios largos preenchido com a
brancura de um sorriso e a maciez de um olhar caridoso e palavras plácidas como
o brilho da água iluminada pelos raios de sol da manhã.
—Eu sei- Concordei, apoiando
o copo de plástico entre os joelhos- Eu sei disso agora.
—Vai terminar aquele escrito?
—Logo vai estar pronto. -
Afirmei, ansiosa para que a palavra fim estivesse
escrita no rodapé de uma página no computador.
-Já descobriu o que
gosta?- Indagou, formando uma linha torta com os lábios.
Estalei a língua
ruidosamente.
—Estou me descobrindo. Mas
acho que vou me escrever em um curso de literatura assim que finalmente tiver
concluído.
—Literatura?
—Acho que vai ser
interessante escrever sobre algo mais quente e incrível- Complementei.
—E colorido?
—Exatamente- Ajeitei uma
mecha bicolor atrás da orelha, achando que o adjetivo estranho dele tinha
encaixado perfeitamente- Espero que seja boa o suficiente para passar. Que eu
não seja...
Interrompi minha locução. Por
um segundo seus olhos se tornaram vermelhos e inchados. Minha indecisão e
insegurança eram os responsáveis.
Vermelhos. Incrivelmente
perigosos.
—Eu vou- Afirmei e seus olhos
voltaram a ser azuis, suaves e harmoniosos.- Estou confiante.
—Está feliz?
Encarei-o saboreando aquela
pergunta complexa.
—Estou desenhando isso. Minha
felicidade, Todo dia.Tracejando...
Ele se sentou ao meu
lado, apoiando o canto do rosto em sua mão dobrada.
—Acho que é essa a graça de
estar vivo.
Eu estava viva, lutando para
ver cada luz, escuridão. Arco-íris e quedas. Descobrindo. Me descobrindo.
Acenei ruborizada, com a
energia de sentimentos inexplicáveis.
—Sim.- Concordei, inclinando
meu rosto em direção ao horizonte atrás da janela aberta, as curvas da cidade e
do inexplicável perfume de mais um momento- Essa é a emoção de viver.
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